Etnomatemática

20/09/2008 22:47

ETNOMATEMÁTICA E EDUCAÇÃO MATEMÁTICA.


Ademir Damazio – Unesc
Luiz Rene Ferreira – Faculdades SATC

        Palestra realizada na II Jornada Nacional de Educação Matemática - XV Jornada Regional de Educação Matemática, de 6 a 9 de maio de 2008, em Passo Fundo - RS, na Universidade de Passo Fundo

        O termo, utilizado por Ubiratan D´Ambrosio, diferentemente do que o nome sugere, etnomatemática não manifesta apenas o estudo da matemática de diversas etnias. Utilizou as raízes tica, matema e etno para significar que há várias maneiras, técnicas e habilidades (ticas) de explicar, de entender, de lidar e de conviver com (matema) distintos contextos naturais e sócio-econômicos da realidade (etnos): Etnomatemática. Traz à tona as práticas matemáticas dos grupos culturais diferentes. O prefixo “etno” num sentido mais amplo, refere-se a qualquer grupo, como: sociedades nacionais, indígenas, comunidades de trabalho, tradições religiosas, classes profissionais e outros. Nas práticas matemáticas incluem: sistemas simbólicos, técnicas práticas de construção, métodos de cálculo, medições no tempo e espaço, modos específicos de raciocínio e conclusão, e outras atividades cognitivas e matérias que podem ser traduzidas para a representação matemática formal.
        Além desse caráter antropológico, a etnomatemática tem um indiscutível foco político, pois é permeada pela ética, focalizada na recuperação da dignidade cultural do ser humano.
        Objetivo da etnomatemática é entendimento do saber/fazer matemático ao longo da história da humanidade, por distintos grupos de interesse, comunidade, povos e nações.
        Ubiratan D´Ambrosio efetuou várias pesquisas nesta área, bem como publicou vários trabalhos a respeito, sendo ainda considerado o precursor do Movimento de Etnomatemática no Brasil, que surge em 1975. Este movimento aparece com as observações acerca do comportamento matemático de grupos sociais que, no dia-a-dia, desenvolvem suas atividades sem nenhuma dificuldade, pois os raciocínios se traduzem as necessidades. Podemos observar nas ruas vários indivíduos trabalhando nas mais variadas atividades: pequenos comerciantes ditos informais, trabalhadores da construção civil, cobradores de ônibus, etc. Normalmente, estas pessoas estão nestes ramos por necessidade de sobrevivência, tendo que abandonar a escola em algum momento de sua vida. O pressuposto etnomatemático diz que há formas de pensamento matemático na atividade, por exemplo, do menino que vende picolé, calcula o troco mental e rapidamente, assim como o pedreiro estabelece dimensões espaciais, para a construção de sua obra.
        Da mesma forma, D´Ambrosio (2002) diz que é impossível não reconhecermos que os indivíduos de uma nação, de uma comunidade, de um grupo compartilham seus conhecimentos, tais como a linguagem, os sistemas de explicações, os mitos e cultos, a culinária e os costumes. Por terem seus comportamentos compatibilizados e subordinados a sistemas de valores acordados pelo grupo, os indivíduos pertencem a uma cultura. No compartilhar conhecimento e compatibilizar comportamento estão sintetizadas as características de uma cultura. Para o autor, os diferentes modos de fazer (práticas) e de saber (teorias), características de uma cultura, são parte do conhecimento compartilhado e do conhecimento compatilizado. Conclui que o comportamento e conhecimento, as maneiras de saber e de fazer estão em permanente interação.
        É nesse contexto, que poderia se estar questionando sobre as especificidades de conhecimentos matemáticos de algumas profissões. Qual o conhecimento matemático do carpinteiro, quando usa relações trigonométricas (que nem sempre um estudante de ensino médio conhece) para construir uma casa? Como um cortador de árvores da floresta sabe fazer a cubação da madeira, com cálculos que envolveriam o uso do π? Estas questões de cunho popular acabam levando a Academia a buscar informações e respostas para que se possa no mínimo valorizar todos os atos cognitivos do homem.
        A etnomatemática surgiu então para valorizar esta cultura, assim como estabelecer relações com a matemática escolar. Não seria justo supervalorizar a matemática erudita e abandonar as formas práticas matemáticas, muitas vezes passadas de pai para filho ao longo de milhares de anos. A etnomatemática não quer somente valorizar as práticas matemáticas cotidianas, mas também quer entender e explicar tais habilidades, identificando inclusive novas técnicas. Estes elementos serão teorizados, daí a aproximação de uma nova teoria da cognição, segundo D´Ambrosio.
        Quanto a sua finalidade, o autor indica:
        Essencialmente, admitimos que toda atividade humana resulta de motivação proposta pela realidade na qual está inserido o indivíduo através de situações ou problemas que essa realidade lhe propõe diretamente, através de sua própria percepção e de seu próprio mecanismo sensorial, ou indiretamente, isto é, artificializados mediante propostas de outros, sejam professores ou companheiros. Queremos entender esse processo que vai da realidade à ação. (1998, p. 6-7).

        A etnomatemática procura entre outros, entender as diferenças culturais, procurando explicar suas origens e a necessidade de sua existência. Este estudo acaba tendo um enfoque histórico e antropológico que D´Ambrosio (1998, p. 7) chama de matemática antropológica, que visa explicar os processos de geração, organização e transmissão de conhecimento em diversos sistemas culturais e as forças interativas que agem nos e entre os três processos. É um estudo que tem inclusive, cunho holístico.
        D´Ambrosio (1998, p. 56) coloca que, durante a primeira metade do século passado, a matemática e, num grau menor, a ciência praticamente ignoraram a antropologia. Nenhuma referência à antropologia, nem mesmo antropologia cultural, aparece como coisa de interesse para os matemáticos, exceto em alguns exemplos de estruturas algébricas tiradas de relações de parentesco e que servem para reforçar a idéia predominante de matemática como forma de conhecimento universal, basicamente apriorístico.
        D´Ambrosio (2002) cita alguns estudos que tentam elucidar como ocorre esse aprendizado: Nunes, Carraher e Schliemann (1996) reconheceram que crianças ajudando os pais na feira livre, em Recife, adquirem uma prática aritmética muito sofisticada para lidar com dinheiro, fazer troco e ser capaz de oferecer desconto sem levar prejuízo. Marafon (1996), procurando perceber a influência que a profissão dos pais tem sobre o desempenho dos filhos na escola, identificou práticas matemáticas próprias das profissões de borracheiro. Villa (1993) pesquisou a maneira como vendedores de suco de frutos decidem, por um modelo probabilístico, a quantidade de suco de cada fruta que devem ter disponíveis na sua barraca para atender, satisfatoriamente, as demandas da freguesia. Shochey (1999), que identificou práticas de matemática de cirurgiões cardíacos, focalizando critérios para tomadas de decisão sobre tempo e risco e noções topológicas na manipulação de sutura.
        Dentre os trabalhos de campo em realidades alheias a do ambiente escolar, destacam-se os de outros autores como: Sebastiani Ferreira (1987, 1989, 1993, 1994a, 1994b), que foi o pioneiro em trabalho de campo na área, realizando e orientando investigações cujas pesquisas empíricas se desenvolveram em regiões da periferia urbana de Campinas e em comunidades indígenas do alto Xingu e do Amazonas. Destaca-se também Marcelo Borba (1987, 1990, 1992a, 1993) com crianças da favela Vita Nogueira – São Quirino, em Campinas; Nelson Carvalho (1991) com os índios Rikbaktra, que vivem na região Centro-oeste; Sérgio Nobre sobre o “jogo do bicho”, Geraldo Pompeu (1992) sobre as influências nas atitudes de professores de um trabalho que buscou introduzir no currículo escolar a Etnomatemática; Knijnik (1988, 1990a, 1990b) envolvendo pesquisas empíricas em regiões da periferia urbana de Porto Alegre e no meio rural do Rio Grande do Sul (Knijnik, 1992a, 1992b, 1992c, 1993a, 1993b, 1993c, 1994, 1995a, 1995b, 1996). Atualmente, além desses pesquisadores, novos estão surgindo como conseqüências de participação em programa de pós-graduação em Educação Matemática.
        As pesquisas nesse campo aumentam se traduzindo em dissertações de mestrado e teses de doutorado dos programas de Pós-Graduação na área da Educação. Esses estudos têm encontrado espaço de divulgação/discussão em dois encontros específicos, realizados na USP (2000) e UFRN (2004).
        Os trabalhos têm o intuito de se analisar os modos diferenciados de as pessoas aplicarem os conteúdos matemáticos nos grupos culturais diversificados. Estabelecem distâncias entre a maneira “caseira” de se “fazer contas” e o saber científico lecionado nas escolas. Mas sem valorizar, ou focar de forma referencial, os conhecimentos espontâneos em relação aos eruditos. Foram examinados em campos diferentes, com olhares diferentes e um foco comum ao estabelecer relações entre os tipos de matemática: popular e erudita.
        Citaremos aqui o trabalho Knijnik (1996) por fazer um diferencial em relação à D´Ambrosio, ao penetrar no âmago da formação do educador, em particular do educador matemático, a partir do exame da elaboração espontânea do conhecimento. Examina a lógica interna do conhecimento de origem popular e questiona os porquês de sua organização intelectual. A partir da crítica epistemológica, parte para a crítica histórica, denunciando o conhecimento que se impõe como estruturado e formalizado pela cultura conquistadora – dominadora e colonialista – com a finalidade de satisfazer aos interesses dessa cultura. Tal conhecimento é organizado, intelectual e socialmente, para que o poder dominante se mantenha e se reforce. Isso está presente nas relações entre indivíduos, através de um sistema escolar reprodutor, desestimulante e discriminatório, nada criativo e, também, nas relações sociais, que restringem e até suprimem as manifestações culturais do grupo social dominado.
        Knijnik (1996) faz uma análise do processo de educação matemática com professores de escolas dos assentamentos dos sem-terra, com ênfase no movimento empírico ao científica, com foco sobre os aspectos socioculturais e pedagógicos. Seus estudos residiram em duas práticas usuais pelos sem-terra, que são: cubação da terra e a cubagem da madeira. A primeira consiste no cálculo da área de uma determinada superfície de terra; demarcação de áreas a serem cultivadas, bem como o pagamento pelo trabalho de preparação para o plantio em função do tamanho. A segunda se refere à avaliação do volume de uma certa quantidade de árvores a serem derrubadas para a construção de casas, abrigos para animais, cercas e para combustíveis, nos projetos de reflorestamento, produção de madeiras beneficiadas e outros.
        De acordo com D’Ambrosio, durante muito tempo e com alguns resquícios na atualidade, a matemática foi vista e utilizada como disciplina formadora de intelectuais, determinando a princípio “inteligências” direcionadas ao mercado de trabalho. Desde a revolução industrial que indivíduos tidos como de raciocínios lógico-matemáticos desenvolvidos eram absorvidos, pelo mercado de trabalho, por atender aos princípios de qualidade para o desenvolvimento tecnológico da indústria.
        Desde então, indústria se confunde com trabalho que, por sua vez, acabou direcionando e impondo certas regras à educação brasileira. A economia, além de determinar as regras de formação do indivíduo, também interfere nas políticas que influenciam a formação dos cidadãos. D´Ambrosio, a respeito das tendências e “necessidades” do sistema, fala:
A matemática e a educação científica foram também tendenciosas em direção às sociedades estáveis, politicamente estruturadas, economicamente desenvolvidas e tecnologicamente avançadas, onde prevaleciam a mão-de-obra assalariada e a estrutura de classe identificável. Não houve reconhecimento de outras estruturas educacionais e de formas culturais diferentes. (1998, p. 56).


        Esta forma tendenciosa de focar conhecimentos matemáticos já aconteceu em vários momentos históricos, não só no Brasil, mas em vários cenários mundiais, como de: lutas pelo poder, conquistas de povos, manutenção de impérios e outras formas de manipular pessoas. Damazio (2000, p. 62) diz que, desde a antiguidade, sempre houve preocupações de privilégios a respeito da socialização do conhecimento matemático. O interessante era que os trabalhadores manuais se apropriassem apenas dos rudimentos da matemática prática, em especial o cálculo. Os conhecimentos eruditos, conceitos científicos da matemática, eram reservados àqueles que tinham ligações mais estreitas com o poder decisório ou aos membros da classe dominante em cada período histórico. Essa concepção esteve presente desde as origens da Matemática egípcia, romana, árabe e grega.
        Fica claro que numa sociedade de dominação, os conhecimentos matemáticos escolares não são privilégios de todos, isto é, ou pelo menos não podem ser de todos, são destinados aos indicados, aos privilegiados ou aos “merecedores”. Porém a matemática rudimentar, do dia-a-dia, esteve presente e é inerente ao homem. Mesmo sem o acesso às academias ou a grupos de estudos, o homem sempre utilizou a matemática para resolver seus problemas e facilitar a sua vida. Mas com a complexificação das atividades e dos novos conhecimentos houve uma aproximação da matemática científica com a matemática cotidiana. A vida social, o trabalho acabam por nortear estas relações e Damazio, citando D’Ambrosio, diz:
        A aproximação da Matemática prática com a Matemática erudita está ligada ao surgimento de novas relações de trabalho: na Renascença, quando surge uma nova ordem obreira, principalmente na arquitetura e na pintura; na era industrial, por necessidade de trabalhar com maquinários e manuais de instruções. Com o restabelecimento das novas relações, o domínio dos conhecimentos matemáticos eruditos
não era suficiente para os filhos da aristocracia. Também se fazia necessário o domínio do conhecimento prático para que tivessem uma preparação mais completa com a finalidade de assegurar a hegemonia social, cultural e econômica, na nova ordem. (DAMAZIO, 2000, p. 63).


        Nestes novos momentos ocorre a busca dos conhecimentos matemáticos por ambas as classes sociais. Por um lado os dominados buscam os conhecimentos eruditos com a intenção de serem valorizados e sobreviver no contexto produtivo. Por outro, os dominantes buscam os práticos, pois para dominar faz-se necessário o conhecimento abrangente, como forma de se precaver de uma possível “trapaça” por parte dos dominados.
        Neste cenário político-econômico, a etnomatemática se permite intervir e se desenvolver. Knijnik (1996, p. 88) dá uma nova denominação, abordagem etnomatemática, designando-a como sendo a investigação das tradições, práticas e concepções matemáticas de um grupo social subordinado e também o trabalho pedagógico que é desenvolvido com o objetivo de que o grupo:
→interprete e decodifique o seu conhecimento;
→adquira o conhecimento produzido pela matemática acadêmica e estabeleça comparações entre o seu conhecimento e o acadêmico, analisando as relações de poder, envolvidas no uso destes dois saberes.
        Trata-se de estudar a cultura do trabalho, considerando que nela estão subtendidas relações de poder e diferentes conhecimentos, pois neste ambiente existem aqueles que possuem conhecimentos matemáticos superiores e outros com rudimentos matemáticos. Então o que seria cultura? De acordo com Ximenes (2000, p. 273), é o conjunto de experiências e realizações humanas (costumes, crenças, instituições, produções artísticas e intelectuais) que caracterizam uma sociedade. Ainda, o conjunto de conhecimentos adquiridos numa determinada área de atividade. Knijnik considera que:
        Especificamente à cultura, seria ingênuo considerá-la desconectada das lutas que estão em jogo no processo de sua apropriação e de sua legitimação, à medida que ela está intrinsecamente relacionada com o poder social daqueles que a produzem e reproduzem. Falar em cultura, sem explicitar de que cultura se está falando, isto é, sem introduzir a categoria poder no cerne de sua significação, impossibilita uma análise que busque interpretar a cultura de um determinado grupo social, em particular a matemática praticada por este grupo do ponto de vista sociológico. (1996, p. 89).
        Porém, no caminho daquilo que é considerado inferior para o superior, o homem desenvolve outras capacidades, inclusive a de raciocinar acerca de seu verdadeiro papel na sociedade. Ele acaba adquirindo a consciência da sua importância e conhecendo seus verdadeiros direitos e deveres. Com isso, passa a buscar efetivamente a sua dignidade, o que pode resultar em conflitos sociais, onde novamente a educação entra em cena para fazer as mediações. Nesse processo educativo a matemática se fará presente já que os conflitos são de ordem universal e a matemática é uma das disciplinas que se expandiram nesse nível.
        No contexto dessa universalidade, a educação matemática passou a mediar os conflitos, na maioria das vezes, para satisfazer novamente uma elite que cria, neste momento, novos mecanismos de coibição para a expansão e progresso dos assalariados como também para a apropriação de conhecimentos matemáticos superiores. Para tal ela impõe novos conteúdos, novas discussões e constrói novas grades curriculares. Muitas destas imposições distanciam ainda mais o indivíduo de sua realidade, tornando-o novamente um agente da alienação. D´Ambrósio (1998, p. 10) diz que esta universalidade é que tem justificado a necessidade do ensino.
        O cuidado que se deve ter, no entanto, é que a obrigatoriedade do ensino tem em sua subjacência os interesses de imposição e dominação. E ressalta:
        A matemática é, desde os gregos, uma disciplina de foco nos sistemas educacionais, e tem sido a forma de pensamento mais estável da tradição mediterrânea que perdura até nossos dias como manifestação cultural que se impôs, incontestada, às demais formas. Enquanto nenhuma religião se universalizou, nenhuma culinária nem medicina se universalizou, deslocando todos os demais modos de quantificar, de medir, de ordenar, de inferir e servindo de base, se impondo, como o modo de pensamento lógico e racional que passou a identificar a própria espécie. Do Homo sapiens se fez recentemente uma transição para o Homo rationalis. Este último é identificado pela sua capacidade de utilizar a matemática, uma mesma matemática para toda a humanidade e, desde Platão, esse tem sido o filtro utilizado para selecionar lideranças. (D´AMBROSIO, 1998, p. 10).
        As lideranças existem nos povos, nas culturas diferenciadas, ditas populares e eruditas, que nascem e são criadas para as suas manutenções e transformações. A grande problemática reside na interpretação e na conceituação dessas formas de cultura e o porquê das classificações, uma vez que os líderes escolhidos têm a missão de guiar seus grupos, de promover os seus desenvolvimentos. Mas, quais os verdadeiros interesses? Seria inevitável a divisibilidade dessa cultura? As interrogações levam a mudar o foco do conceito de cultura para o ponto de vista sociológico, bem como sua relação com a pedagogia.
        Nesse sentido, Knijnik (1996, p. 94) contribuiu ao dizer que a cultura encerra-se num sistema de significados constituinte de, e constituído por relações de poder. Nestas predominam as divisões de classes em que o dominante entende que sua cultura difere da do dominado. Numa visão antropológica, de acordo com Geerdz (apud, Knijnik, 1996, p. 94), como sistemas entrelaçados de signos interpretáveis, a cultura não é um poder, algo ao qual podem ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições ou os processos; ela é um contexto em que algo pode ser descrito de forma inteligível.
        Na leitura sociológica:
        A cultura não é apenas um código comum nem mesmo um repertório comum de respostas a problemas recorrentes. Ela constitui um conjunto comum de esquemas fundamentais, previamente assimilados, e a partir dos quais se articula, segundo uma “arte de invenção” análoga à da escrita musical, uma infinidade de esquemas particulares diretamente aplicados a situações particulares (BOURDIEU apud KNIJNIK, 1996, p. 95).
        Para Bourdieu (apud, Knijnik, 1996, p. 97), o campo das relações simbólicas é definido pelas relações de força entre dominados e dominantes, sendo a cultura popular gerada como um produto da condição de dominação. Neste sentido, as desigualdades entre as culturas produziriam e reproduziriam as desigualdades sociais.
        Estas regras constituem o que Hübner (apud, Rosa, 1996, p. 60) chamou de “sistema totalizante”, definido como o conjunto de sistemas de regras que são formados em uma dada sociedade e que constituem sua cultura. Cada regra, chamada de sistema histórico, é o resultado de práticas sociais. As regras são a estrutura interna de práticas que foram desenvolvidas historicamente para responder às necessidades do ambiente físico ou social e evoluem de acordo com sua própria dinâmica. Essas regras ajudam a organizar a vida social, mas, ao mesmo tempo, são interiorizadas pelos membros individuais do grupo em formas que governam o comportamento de cada um nas situações específicas. (...) Quando um grupo social é colocado frente a frente com um novo problema, tem de projetar meios específicos para resolvê-lo, ou seja, tem de criar uma nova prática com o sistema de regras que lhe é inerente.
        Isso ocorre também muitas vezes pela forte necessidade de se destacar, de dizer: “eu posso”, “eu estou aqui”. A participação em um grupo e a proximidade de outros geram esta característica nas pessoas que é, segundo Lévi-Strauss (1980, p. 51), o desejo de oposição, de se distinguirem, de serem elas próprias. Muitos costumes nasceram, não de qualquer necessidade interna ou acidente favorável, mas apenas da vontade de não permanecerem atrasados em relação a um grupo vizinho que se submetia a um uso preciso, um domínio em que nem sequer se havia sonhado estabelecer leis.
        Os defensores da etnomatemática prescrevem que o ideal é incorporar a matemática de um contexto cultural, na educação matemática. Assim, para D´Ambrosio (2002), o paradigma educacional sintetizado no binômio “ensino-aprendizagem”, verificado por avaliação inidôneas, é insustentável. Sua tese é de a educação possibilite, ao educando, a aquisição e utilização dos instrumentos comunicativos, analíticos e materiais que serão essenciais para o exercício de todos os direitos e deveres necessários à cidadania. Para Bandeira (2004) um currículo matemático organizado com base em princípios da etnomatemática é concebido como o desenvolvimento de conceitos matemáticos e práticas que têm origem na cultura dos alunos como também da matemática acadêmica. Explica que os aprendizes começam com que eles sabem, ou as experiências que eles têm, de seu ambiente ou cultura. Essas experiências matemáticas são então usadas para compreender como idéias matemáticas são formuladas e aplicadas em determinados contextos. Sobre isso, argumentam Monteiro e Pompeu Júnior (2001, p. 66):
O ensino da matemática nessa concepção permitirá uma compreensão crítica da realidade, ou seja, levará o aluno a optar pela melhor maneira de resolver seus problemas na medida em que não impõe o saber institucionalizado ao saber do senso comum, mas apenas os problematiza e compara, possibilitando a opção de qual melhor caminho se pretende seguir.
        D´Ambrosio (1997) considera que nos ambientes escolares incidem um encontro de diferentes tipos de conhecimentos: a bagagem dos saberes adquiridos fora da escola encontra, dentro do ambiente institucional, a bagagem de saberes sistematizados nos moldes científicos. Porém, esse encontro tem-se demonstrado frio, sem diálogo.
        De acordo com Lucena e Monteiro (2004), o tratamento do conhecimento matemático acadêmico nos ambientes escolares, desconhecem ou não reconhecem os conhecimentos matemáticos contextualizados na história cultural de seus próprios alunos. Também desprezam as produções de outras populações não eurocentristas. Essa prática usa como justificativa a concepção de que o papel da escola é, exatamente, oportunizar a aquisição de conhecimentos que não estão disponíveis fora do ambiente acadêmico. Para a autora, ampliar conhecimentos significa ir além do que já se conhece, porém, o que se concebe por conhecido é a superficialidade dos saberes da tradição cultural de um povo e não os seus aspectos políticos, epistemológicos e cognitivos que poderiam, também, ampliar os conhecimentos estritamente acadêmicos. Lucena (2004) defende que ao trazer a abordagem etnomatemática para a sala de aula é abre a possibilidade de estabelecer o diálogo entre a ciência e a tradição e aportunidade de superação da superficialidade com que as escolas geralmente concebem os conhecimentos alheios à academia: 

        Afirma:
        A abordagem etnomatemática vai além do subsídio metodológico para o ensino da matemática no contexto escolar. Não se trata, apenas, da melhoria do processo ensino-aprendizagem da matemática, mas de desafiar e contestar o domínio dos saberes e a valorização desse domínio por alguns, sob pena de destituir outros de seus próprios valores, gerando desigualdades e desrespeitos na vida das populações, extermínios de uns para ascensão de outros dentro das sociedades. Portanto, a construção etnomatemática para o trabalho pedagógico é, sobretudo, uma proposta essencial à ética humana. (LUCENA, 2004, p. 57).
        O mérito da Etnomatemática está na inserção de aspectos antropológico, social e político na educação matemática. Isso se manifesta em
sua concepção de conhecimento como atividade humana socioculturalmente determinada. Trazer para o contexto escolar vivências matemáticas dos alunos significa, para os defensores e pesquisadores da Etnomatemática, a possibilidade de reflexão da condição de vida de determinados grupos culturais. Além disso, objetiva a ampliação do conhecimento matemático com especificidade local e o fortalecimento da identidade cultural dos indivíduos como seres autônomos e capazes.

REFERÊNCIAS
BANDEIRA, Francisco de Assis. Etnomatemática dos horticultores de Gramorezinho: o caso do “par de cinco”. In: BANDEIRA, Francisco de Assis; LUCENA, Isabel Cristina Rodrigues de. Etnomatemática e práticas profissionais. Natal: UFRN, 2004.
CARRAHER, Terezinha Nunes, SCHLIEMANN, Ana Lúcia Dias, CARRAHER, David William. Na vida dez, na escola zero. 11. ed. São Paulo: Cortez, 2001.
DAMAZIO, Ademir. O desenvolvimento de conceitos matemáticos no contexto do processo extrativo do carvão. Tese de Doutorado. Florianópolis: Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. 2000.
D’AMBROSIO, Ubiratan. Etnomatemática. São Paulo. Ática, 1998.
___________. In: Anais do Congresso Latino-Americano de História da Ciência e da Tecnologia. Nova Stell, SP: 1989, p.505-9.
___________. Etnomatemática: elo entre as tradições e a modernidade. Belo Horizonte: Autêntica, 2002.
KNIJNIK, Gelsa. Exclusão e resistência: educação matemática e legitimidade cultural. Porto Alegre: Artes Médicas, 1996.
LÉVI-STRAUSS, Claude. A noção de estrutura em etnologia/ Raça e história/ Totemismo hoje. Tradução de Eduardo P. Graeff et al. (coleção Os pensadores). 2. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1980.
ROSA, Josélia Euzébio da; DAMAZIO, Ademir. O estado da arte do ensino da matemática: criando zonas de possibilidades. Criciúma, SC: UNESC, 2001. Relatório de Pesquisa.
MONTEIRO, A.; POMPEU JÚNIOR, G. A matemática e os temas transversais. São Paulo: Moderna, 2001.
XIMENES, Sérgio. Minidicionário da Língua Portuguesa. 2. ed. São Paulo: Ediouro, 2000.


Portal - História da Matemática no Brasil